QUANDO VI ALGUÉM QUASE MORRER

8 de jul. de 2016
A crise dos vinte e tantos anos é uma lástima. Nessa semana mesmo me vi desesperançoso. Angustiado é a palavra certa. Depois de um dia daqueles, deitei na cama e me senti um lixo. Olhei para o tanto de livros que acumulo no quarto e imaginei como a minha existência seria diferente se cada um deles representasse um curso extra no meu currículo, um país visitado no passaporte que nem tenho ainda ou até mesmo dez reais na minha carteira. A ideia de que a vida poderia ser melhor ou diferente do que ela é atualmente me deixa maluco. Essa ideia de que uma escolha mal feita agora pode significar nossa ruína lá na frente é tão assustadora quanto o fato de eu não saber nadar e sempre sonhar me afogando.


É cinematográfico demais pensar que nos últimos segundos de vida a gente vai assistir a um filme de tudo que vivemos até ali. Na verdade penso que se isso fosse possível a causa da morte seria justamente essa: lembrar de tudo que a gente fez e deixou de fazer por alguma razão. As boas memórias trariam saudade e as ruins arrependimento. Eu não costumo achar que saudade é uma coisa boa. Na maior parte do tempo sinto falta de coisas que já não existem mais. São espaços no tempo impossíveis de se repetir ou terem continuidade. É passado. Nada saudável. Acho que na hora da morte não quero pensar em nada. Há algo de tranquilizante nesse vazio. Não quero lembrar, por exemplo, que todo esse meu pavor em morrer afogado pode muito bem ter começado no exato momento em que minha avó brincou de suspender minha cabeça debaixo d'água por mais tempo que o necessário enquanto eu, no auge dos meus 5 anos, só queria catar conchinhas na beira da praia. No máximo quero lembrar de todas as lasanhas que dividi com quem amo, mas, principalmente, as que devorei sozinho.

Não sei como cheguei até aqui, mas o que preciso dizer é que vi alguém quase morrer e venho matutando tudo o que isso significou.

Eu estava indo para o aeroporto, voltando para casa depois de duas semanas na cidade maravilhosa e até aquele momento achei que tudo seria lindo como foi, mas ele estava num ponto de ônibus. Apenas ele. Um senhorzinho. Tinha vitiligo e estava ao sol perdendo os sentidos. Não que eu tenha percebido isso de cara. Minhas amigas e eu só entendemos a situação quando ele pediu ajuda. E pedir é um modo gentil de lembrar, porque na verdade ele implorou. Implorou para que não o deixássemos ali à sorte. Sorte ele não teve. Nem quando muitas outras pessoas se juntaram em tentativas de chamar o socorro. Eram 9h30 da manhã e sabe-se lá quantos outros cidadãos corriam risco de vida no Rio de Janeiro. Segundo a moça da emergência não haviam ambulâncias disponíveis.

Eu não sabia seu nome até deitá-lo no chão e procurar em seus bolsos algo que o identificasse. Enquanto segurava seus pés no alto (recomendações da Samu), ele babava. Um moço suspendia sua cabeça e antes de apagar por completo eu ouvi ele lamentar: eu não deveria ter feito nada disso.

E foi ali que chorei. Não foi desespero, porque foi o que afligiu todo mundo que tentava dar algum tipo de suporte e aquilo de alguma forma me fez forte, mas foi algo mais doloroso que isso. Eu pensei na história que aquele homem carregava consigo. Pensei em quão errado tudo aquilo me parecia. Um velhinho, morrendo sozinho entre meia dúzia de estranhos. Dependendo de gente que não devia nada a ele e de um sistema que não funciona nas poucas vezes que a gente realmente precisa. Eu tive medo também. De precisar de algum desconhecido da mesma forma que ele precisava naquele momento. Ele se agarrava a algo para não ir embora, e eu não sabia ao certo os motivos que ele tinha pra ficar. Parecia tão frágil, tão abandonado. Mais tarde eu descobri que era tudo isso mesmo.

Tive de ir embora. Ele ficou lá. À espera. Uma amiga minha teve de levá-lo ao hospital, porque mesmo uma hora depois da primeira ligação nenhum carro veio em socorro. Ele sobreviveu. Derramou lágrimas de agradecimento e disse o que eu já suspeitava: vivia sem ninguém há um tempo. Era separado e as filhas já não se importavam.

E isso foi o gatilho necessário para centenas de questões pipocarem em minha cabeça. Eu nunca vou saber se ele foi um pai carinhoso, um marido presente ou um homem gentil. Se ele roubou, matou ou abandonou alguém primeiro. Eu não faço ideia da vida que ele levou, mas sei que a vida quase o levou embora naquela manhã. Voltei a Maceió pensando nas pendências econômicas, políticas, culturais e afetivas que tanto me perturbam diariamente. Nesse meio mundo de coisa que a gente precisa fazer para ter uma vida razoável, feliz e plena, esquecendo-se de tudo que nos faz feliz e razoavelmente plenos. Não cheguei a conclusão nenhuma. Nem em 21 anos, nem em três horas de voo.

Acho que a gente só vai ao cinema quando tem algo bom em cartaz. A história tem que ser boa. Pode ser um drama, uma animação em 3D ou um francês fora do circuito. Quando eu fechar os olhos pela última vez quero assistir a um filme autêntico. Quero estar surfando as maiores ondas da califórnia, porque daqui pra lá já saberei nadar. Daqui pra lá é muito tempo. Essa crise que tanto nos faz sofrer é a mesma que pode nos fazer sorrir na crise dos 40. É a mesma que pode nos levar ao fim agorinha, num ponto de ônibus qualquer.

4 comentários:

  1. Anônimo14:26

    Fascinante! Fascinante é a palavra para o que eu acabo de ler.

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  2. olá!
    seu texto é lindo! passei pela crise dos 18, dos 21 e criei a dos 22, é complicado passar por esses perrengues e de verdade, eu creio que cada situação surge em nossa vida para nos tornar pessoas mais fortes e decididas, espero que seja assim para você!
    http://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/

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  3. Nossa! Que texto foi esse? Estou sem palavras, vou ficar pensando nas suas palavras a semana inteira.

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  4. Já dizia Pedro Bial: "Não se preocupe com o futuro.
    Ou então preocupe-se, se quiser, mas saiba que pré-ocupação é tão eficaz quanto mascar chiclete para tentar resolver uma equação de álgebra."

    ResponderExcluir

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